27 fevereiro 2007

STJ e 'pancada na criancinha deficiente'


Como sempre, deixámos passar uns dias para a coisa acalmar. Vamos então pensar.

O Supremo Tribunal de Justiça [STJ], tradicionalmente considerado o tribunal mais importante em Portugal [ainda que Lorenzetti seja mais 'amigo' do Tribunal Constitucional, mesmo que mais politizado] tomou uma decisão que tem sido muito discutida nos jornais e nas ruas.

Isso é desde logo bom: quer dizer que as pessoas estão atentas ao que se passa nos tribunais e que não discutem apenas o que se passará no próximo episódio da novela ou da série que costumam ver.

Por outro lado, é mau: neste caso a discussão nasceu no facto de estar-se perante uma decisão que terá feito algo horripilante: legitimar a violência sobre as crianças. Será assim? É provável. Vamos ver.

Lorenzetti leu a decisão. É importante dizer isto. E apresenta alguns extractos, doravante designados como 'pérolas':

'A expressão " maus tratos ", curiosamente, assumiu na nossa língua uma conceptualização própria, sendo extremamente rara a sua utilização no singular'

'Este poder-dever de correcção levanta, todavia, problemas delicadíssimos de fronteira. Há que saber até onde pode ir considerando, consequentemente, insusceptível de preenchimento de qualquer ilícito criminal o que fica aquém. Sempre com a consciencialização de que estamos numa relação extremamente vulnerável e perigosa quanto a abusos. Mais intensamente ainda no nosso caso por se tratar de menores internados em instituição e com deficiências psíquicas'

'Qual é o bom pai de família que, por uma ou duas vezes, não dá palmadas no rabo dum filho que se recusa ir para a escola, que não dá uma bofetada a um filho que lhe atira com uma faca ou que não manda um filho de castigo para o quarto quando ele não quer comer?

Quanto às duas primeiras, pode-se mesmo dizer que a abstenção do educador constituiria, ela sim, um negligenciar educativo.

Muitos menores recusam alguma vez a escola e esta tem - pela sua primacial importância - que ser imposta com alguma veemência.

Claro que, se se tratar de fobia escolar reiterada, será aconselhável indagar os motivos e até o aconselhamento por profissionais.

Mas, perante uma ou duas recusas, umas palmadas (sempre moderadas) no rabo fazem parte da educação.

Do mesmo modo, o arremessar duma faca para mais a quem o educa, justifica, numa educação sã, o realçar perante o menor do mal que foi feito e das suas possíveis consequências. Uma bofetada a quente não se pode considerar excessiva.

Quanto à imposição de ida para o quarto por o EE não querer comer a salada, pode-se considerar alguma discutibilidade.

As crianças geralmente não gostam de salada e não havia aqui que marcar perante elas a diferença.

Ainda assim, entendemos que a reacção da arguida também não foi duma severidade inaceitável.

No fundo, tratou-se dum vulgar caso de relacionamento entre criança e educador, duma situação que acontece, com vulgaridade, na melhor das famílias.


Este recurso improcede.'

'Resta o problema do dolo. Mas, verdadeiramente, não chega a ser problema.
[...]
Quis ela evitar a hiperactividade do BB e por isso fechou-o na dispensa às escuras chegando a ficar ali fechado cerca de uma hora.

Quis o descanso matinal seu e dos restantes utentes do lar e amarrou o menor nos termos supra descritos.

Agiu com objectivo lícito, mas não podia deixar de saber que assim violentava, como violentou, a criança, infringindo-lhe um tratamento cruel, tanto mais que sabia ser pessoa doente, cujos problemas tinham que ser resolvidos antes de acordo com o aconselhado por médico-psiquiatra.

E, quanto às bofetadas, temos o dolo directo, pois não se provou qualquer outro objectivo relativamente ao qual a agressão funcionasse apenas com meio para atingir outros objectivos que não fossem o infligir sofrimento.

Não tem razão, pois, a recorrente.

XVI - Nestes termos, nega-se provimento a ambos os recursos, confirmando-se a decisão recorrida.

O do M.P. fica isento de tributação.
Quanto ao outro, pagará ela as custas com 4 UCs de taxa de justiça.

Lisboa, 5 de Abril de 2006
João Bernardo
Pires Salpico
Henriques Gaspar
Políbio Flor'


E assim acontece.

O problema desta decisão nem é, para Lorenzetti, o caso concreto. Ou, pelo menos, o GRANDE problema.

O problema desta decisão é que coloca em causa a legitimidade dos tribunais.

Claro que não a legitimidade jurídica e constitucional: essa está na lei.

Mas coloca em causa a mais importante, a que conta na vida prática: a legitimidade social e política.

Como pode a sociedade viver em ordem e paz quando decisões destas a agitam?

Quando decisões destas escandalizam a sociedade, que nelas não se revê?

Quando à esquerda e à direita não se vislumbra apoio à decisão, que é entendida como grotesca e quase que determina a obrigatoriedade legal do 'bom pai de família' em distribuir sopapos 'quando adequados'?

Não aceitamos agressões físicas nem corporais e uma criança, mais do que criança, é um ser humano, que tem direito à sua privacidade e intimidade.

Seja deficiente ou não.

Só tem filhos quem quer.

Se calhar o problema é mesmo esse.

Mas esperava mais do Tribunal Supremo. Até porque de uma decisão destas não é possível recorrer. Pelo menos dentro do sistema judicial actual. Vamos a ver se com decisões destas ele se aguenta.

A justiça deve ser cega, mas há limites.

Imagem:

Sebastião SALGADO [1984], Etiópia

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