28 janeiro 2007

O Legado


O Nome da Rosa é dos filmes mais sensíveis, eficazes e originais de todos os tempos. Ofereceram há pouco a L. o DVD entretanto editado, e o reencontro com esta peça genial, de Jean-Jacques Annaud sendo actores principais Sean Connery e o então [1986] imberbe Christian Slater. Um prazer 'inaudito e inaudível'. Contrariamente aos entretanto mitificados James Bond [que à época deviam ser uma bela porcaria, mas que hoje são belos retratos de 'época' e de kiss-kiss bang-bang [actualmente bang-bang deve bastar para as duas]], no Nome da Rosa Sean Connery assume o papel de um personagem complexíssimo [William de Baskerville], de uma humanidade e consciência extremas de si, do outro e da humanidade em geral e da cultura -- como legado, representado no filme sob a forma de livros proibidos -- em particular. Ao escrever este post, L. tem ao seu lado um livro de umas boas mil páginas, cujo exterior está praticamente carbonizado. Percebe-se no entanto, pela gravação na pele cheia de cortes, que teria motivos florais em dourado a toda a volta, uma lombada em marroquim vermelho com linhas clássicas, motivos florais dourados, uma letra e, a toda a volta, a face exterior das páginas foi gravada com losangos que contêm flores em baixo relevo, e que teriam sido também douradas sobre o papel. Serve esta descrição não para demonstrar a obra de arte que é o livro, mas aquilo que foi, que se depreende que foi, o que resta e o que se perdeu. O que não se sabe é como se perdeu. O fogo que carbonizou o exterior fez com que o interior resistisse à mais brava humidade, insectos e outros roedores [sim? talvez.]. As suas páginas estão límpidas, e mais de quatrocentos anos volvidos, deixam entrever um mundo que já não existe sem ser em livro. Estas não são as grandes características que tornam o livro raro e apetecível. Mas são as que L. relaciona com O Nome da Rosa, onde se descreve um mosteiro perdido no norte de Itália, no século XIV, igual a tantos outros por essa Europa fora, que guarda uma biblioteca já na época preciosa.

Uma biblioteca que reúne volumes sem conta, da mais diversa natureza, idade e proveniência, com uma única característica comum: serem proibidos, por desafiarem os axiomas fixados pela Igreja à época.

Livros sobre a concepção e a mulher, sobre o amor, sobre o riso e a comédia.

Livros sobre todos os temas de prazer humano, reunidos no termo 'hedonismo' e naquilo que hoje se chama a 'boa vida' e que para alguns é o dia-a-dia.

O filme gira em torno de homicídios misteriosos, sem que se saiba, desde logo, que na verdade os homicídios giram, eles mesmos, em torno de uma torre que guarda livros proibidos.

William de Baskerville, um dos nossos personagens principais, é monge franciscano e, neste mosteiro beneditino [não iremos discutir esta oposição de escolas] descobre esta biblioteca.

A biblioteca reúne os volumes que Baskerville já sabia existirem, mas que julgava perdidos, irrecuperáveis ou simples mitos.

Obras como as poesias de Aristóteles sobre o amor.

Obras proibidas pelo establishment, que desafiavam a regra do não pensamento autónomo e todos os dogmas possíveis e imaginários. Ou, se quisermos, obras que foram desafiadas séculos depois de criadas [no caso de Aristóteles certamente mais do que um milénio] por regras humanas queridas divinas.

Muito podia dizer-se sobre este filme.

Fica a referência à visão aberta de Baskerville, e sobretudo à sua quase pueril afeição à biblioteca, por oposição ao tratamento seco quando em sociedade, pela noção clara que tinha da importância desse livros, precisamente, para o desenvolvimento da mesma sociedade e para a sua 'salvação' e libertação. Seja espiritual seja material.

À firmeza de princípios e de acção de Baskerville e à sua fidelidade à liberdade de pensamento, de escrita e de leitura.

E à necessidade fundamental de preservação do conhecimento, sobretudo do conhecimento único, que nos milhões e milhões de quilómetros deste planeta, se resumem a páginas de livros por vezes únicos, de paradeiro desconhecido, por vezes maltratados e mais das vezes destruídos sem critério.

Se um ser humano raramente ultrapassa os 100 anos [e em nenhum caso os 200...], um livro pode durar milénios [mesmo que vá mudando de aspecto...!].

Este nosso amigo, que aqui repousa ao lado, era um jovem quando se queimavam hereges nos autos-da-fé.

E por dentro, este livro continua igual. Transmite a L. aquilo que transmitiu a gerações e gerações, com um sem número de interpretações.

Não só é uma obra de arte, pela sua feitura e pelas belíssimas gravuras que contém, como é uma peça de conhecimento que continua vivo enquanto preservado e lido.

A personagem Baskerville percebia isso, à escala grandiosa do mosteiro retratado em O Nome da Rosa.

Todos nós temos, em maior ou menos escala, com plena ou nenhuma consciência, um Legado.

Saberemos preservá-lo e, sobretudo, apreciá-lo nos intervalos da publicidade? Do casamento? Do emprego? Das férias? Da vida?