24 novembro 2006

Afinal, o que é um Advogado?


Nas últimas semanas discutiu-se em Portugal um resultado estatístico segundo o qual metade dos advogados em exercício têm menos de seis anos de experiência.

Poderíamos inquirir se isto se reflecte na qualidade do serviço, ou se é devido à proliferação de cursos de Direito e não fixação de baixo numerus clausus, ou se os advogados rapidamente desistem de ser advogados.

Para além das questões mais imediatas, podemos antes pensar no básico do básico.

O que é um advogado hoje em Portugal?

Não no sentido filosófico, mas na prática.

E em particular, o que é um advogado de cidade. Isto é sobretudo interessante se comparado com o City lawyer londrino.

O caso português, se lermos a legislação aplicável, é simples de entender, mas difícil de perceber. Entende-se o que a lei diz e como a realidade é, mas não se percebe a razão de ser da divergência entre a legislação e a realidade.

A legislação hoje em vigor resulta de uma recente reforma global e consiste essencialmente na chamada 'Lei dos Actos Próprios'[Lei 49/2004] e no Estatuto da Ordem dos Advogados [Lei 15/2005], bem como em diversos regulamentos sobre formação e avaliação, todos no site da Ordem dos Advogados.

A Lei dos Actos Próprios prevê essencialmente dois tipos de actividade reservada aos advogados.

O exercício do mandato forense e a consulta jurídica.

'São ainda actos próprios dos advogados e dos solicitadores os seguintes:

a) A elaboração de contratos e a prática dos actos preparatórios tendentes à constituição, alteração ou extinção de negócios jurídicos, designadamente os praticados junto de conservatórias e cartórios notariais;
b) A negociação tendente à cobrança de créditos;
c) O exercício do mandato no âmbito de reclamação ou impugnação de actos administrativos ou tributários'


Assim, que exercer estas actividades sem ser [solicitador em alguns casos, que aqui não trataremos] advogado ['licenciados em Direito com inscrição em vigor na Ordem dos Advogados'] é criminoso [crime de procuradoria ilícita, 'punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias'].

Aparentemente, tudo bem. O artigo percebe-se e a reforma em geral foi uma boa ideia e na maioria um avanço.

Mas como em muitas situações na vida, os problemas descobrem-se mais tarde.

Quais os requisitos então para ser advogado, se quisermos praticar ambas as actividades acima ou apenas uma delas?

Em, regra, o famoso estágio, que culmina com um complexo processo de avaliação [também ele reformado recentemente] incidente sobre deontologia [essencialmente ética profissional] as áreas processuais [i.e. processo civil e penal, podendo ainda ser examinadas matérias em direito processual laboral e direito da família].

Se é evidente que ética profissional é essencial, já é difícil compreender que um indivíduo interessado em prestar apenas consulta jurídica ou apenas exercer o mandato forense tenha de saber e ser examinado em todas as matérias, i.e. aquelas aplicáveis a quem exerce o mandato forense e a quem presta consultoria jurídica.

Sobretudo quando as áreas de Direito são hoje tão diversas e a especialização inevitável.

Seria o mesmo do que exigir a um dentista que saiba extrair um tumor cerebral, ou a um professor de matemática que saiba ensinar também [e tão bem] história ou educação visual.

É interessante e quem sabe lúdico, mas custoso, a todos os níveis e, sobretudo, inútil.

Se é claro que existe uma 'clínica geral' pela qual devem passar todos os profissionais de um ramo, essa clínica está na licenciatura. O resto é especialização.

Para quê exigir a advogado que pretende exercer o mandato forense na área laboral que perceba de direito financeiro?

É evidente que esse advogado não precisa de saber o que é um swap, ou um lease-back, ou a MiFID.

E é evidente que um advogado da área financeira não deve ser obrigado a saber se quem exerce o mandato forense pode apresentar requerimentos de abertura de instrução ao sábado e a qualquer pessoa que passe na rua, ou se pode enviar por fax, ou qual é o mapa judicial português.

Devia pois ser evidente que não faz sentido aplicar regimes de régua e esquadro a realidades diferentes daquilo que se avalia.

E é o que acontece hoje. Exige-se processo penal, processo civil e afins.

Porém, se esse candidato a advogado estiver a trabalhar num escritório onde nem sequer se fala de tribunais, a palavra é perplexidade. E logo de seguida, inadequação.

E é isso que acontece nos escritórios de advocacia de qualquer cidade onde se fazem negócios.

Os advogados prestam consulta jurídica, muitas vezes em negócios que não vão a tribunal, dadas as exigências de tempo e discrição das partes. É o caso, desde logo, da banca de investimento, da bolsa e da banca privada / gestão de activos.

E não se diga que isto não é advocacia.

É-o dese logo porque a Lei dos Actos Próprios estabelece como acto próprio dos advogados a consultoria jurídica.

Seja sobre divórcios [de pessoas...] ou fusões [de sociedades comerciais...].

E não se diga que há pouca gente nisto.

Desde logo porque os maiores escritórios [em número de advogados] são, como se sabe, aqueles que menos exercem o 'mandato forense'. Talvez por isso os advogados ingleses se dividem em solicitors [consulta] e barristers [mandato forense]. Uns litigam, os outros fazem o resto. Todos são regulados pela mesma entidade, mas de modos diferentes. E com formação diversa.

Não trata este post de 'arrogância da banca', como dizem alguns. Não se trata de afirmação da 'advocacia de negócios'.

Trata-se de a Lei dos Actos Próprios enquadrar como advocacia toda a consultoria jurídica, inclusive a de 'negócios', que em regra nada têm a ver com tribunais.

Não se leia daqui que tal não deve entender-se como acto próprio.

Leia-se sim que se assim é, a avaliação dessa gente deve ser específica.

Não se devendo pois exigir a quem presta consulta jurídica em asset finance, project finance, corporate finance, telecomunicações, serviços financeiros ou valores mobiliários, que perceba de processo civil, penal ou laboral, ou divórcios.

Para já é inútil.

E depois é injusto e conservador sem sentido, tentando perpetuar a ideia de que ['a verdadeira']'advocacia' é apenas tribunal.

Se o é, não se incluísse a advocacia de negócios na Lei dos Actos Próprios...

Mas sobretudo, é danoso para os consumidores de serviços jurídicos.

Que confiança tenho eu no título de 'advogado' que tem a pessoa que contrato para dar-me uma opinião sobre um acordo de gestão de carteira [de valores mobiliários] com um dos meus bancos ?

Nenhuma.

Porque afinal, não o avaliaram em direito bancário, nem em regulação de valores mobiliários.

Avaliaram-no em processo civil, penal e afins.

E a mim, como cliente, para este tipo de serviço, que é o que quero, isso nada me diz.

Apenas me preocupa.



PS - Irei, provavelmente, acabar por contratar um psicólogo. Maria, quando acabas esse curso ?