19 julho 2007

O caso Litvinenko



Num dos Itsu de Londres morre um russo, num suposto envenenamento com uma substância radioactiva. O resto da história já se sabe: o Reino Unido pede a extradição de um russo no processo de investigação do envenenamento, a Rússia recusa, o Reino Unido expulsa diplomatas russos, e a Rússia retalia na mesma moeda.

O Conselho da UE, presidido neste semestre por Portugal, emitiu hoje uma declaração 'sobre o caso Litvinenko', copiada abaixo.

Nessa declaração, o Conselho Europeu toma partido pelo Reino Unido. Tal espera-se, dado o Reino Unido ser membro da UE e a Rússia não.

No entanto, como afirmou hoje em Lisboa a Secretária de Estado dos EUA Condoleeza Rice, a questão é jurídica e não política:

SECRETARY RICE: It's very clear what needs to happen in this current situation. There was a terrible crime committed on British soil. That crime needs to be investigated and the perpetrators brought to justice and punished. It is going to be very difficult to do that without the extradition of those who are requested by the British and without the full cooperation of Russia. So this is an issue of rule of law -- to our minds not an issue of politics, it's an issue of rule of law. And so I think if we get back to the basics here, it is a matter of Russia cooperating fully in what is simply an effort to solve what is was a very terrible crime committed on British soil.

A Rússia, sabe-se, invoca a sua Constituição, que proíbe a extradição de nacionais.

É normal. Acontece assim em quase todos os países com constituição [que não é o caso do Reino Unido, que não tem constituição, embora tenha um Extradition Act].

A Constituição russa é clara:

Article 61.

1. The citizen of the Russian Federation may not be deported out of Russia or extradited to another state.

2. The Russian Federation shall guarantee its citizens defense and patronage beyond its boundaries.


Ora sendo a questão jurídica e a lei clara, não há nada a fazer.

Nos Estados constitucionais, as constituições proíbem, quase sempre, a extradição de cidadãos desse país.

Assim é na:

- Alemanha
Article 16 [Citizenship; extradition]
(2) No German may be extradited to a foreign country.

- Espanha
Artículo 13
3. La extradición sólo se concederá en cumplimiento de un tratado o de una ley, atendiendo al principio de reciprocidad. Quedan excluidos de la extradición los delitos políticos, no considerándose como tales los actos de terrorismo.

- EUA
US Code T.8 Part II Chap. 209, §3181. Scope and limitation of chapter
(b) The provisions of this chapter shall be construed to permit, in the exercise of comity, the surrender of persons, other than citizens, nationals, or permanent residents of the United States,

- Itália
Art. 26.
L'estradizione del cittadino può essere consentita soltanto ove sia espressamente prevista dalle convenzioni internazionali. Non può in alcun caso essere ammessa per reati politici.

- Japão [Lei da Extradição - 68/1953]
(Restrictions on extradition)
Article 2.
(9) When the fugitive is a Japanese national.

- Suíça
Article 25 Protection Against Expulsion, Extradition, and Removal by Force
(1) Swiss citizens may not be expelled from the country; they may be extradited to a foreign authority only with their consent.

- etc.

Este princípio tem vindo a ser mitigado, e crimes como os de terrorismo internacional podem ser excepções que admitam a extradição de um nacional. Mas a regra mantém-se e sempre em reciprocidade.

No entanto, a própria Rússia já pediu, como se sabe, a extradição de vários cidadãos no Reino Unido -- inclusive por terrorismo na Tchetchénia -- tendo os seus pedidos sido negados.

Por outro lado, sucederam casos semelhantes como por exemplo o de Ronald Biggs, que fugiu para o Brasil, que em regra não extradita ninguém [Biggs era britânico e não brasileiro] e o Reino Unido nunca quebrou relações diplomáticas com o Brasil por causa disso. E assim sucedeu em muitos outros casos, menos mediáticos.

E sobretudo, não existe tratado de extradição entre a Rússia e o Reino Unido, como se pode ver neste link, que conduz a uma lista de tratados de extradição celebrados pelo Reino Unido.

É certo que existe uma Convenção do Conselho da Europa sobre Extradição, da qual a Rússia é parte desde 2ooo. Mas a própria Convenção admite a não extradição de nacionais:

Article 6 – Extradition of nationals
1. A Contracting Party shall have the right to refuse extradition of its nationals.

O problema deste caso é pois conjuntural e nada jurídico. A Rússia parece estar a levantar-se e há quem não esteja a achar muita piada. É mais isso. E no rescaldo da crise EUA-Rússia por causa da base antimíssil americana na Europa, ironicamente, os EUA parecem hoje não apoiar os ingleses: ao recordar que a questão é jurídica e não política. Porque se é jurídica, já se percebeu quem tem razão. E não é o Conselho Europeu.


'CONSELHO DA UNIÃO EUROPEIA
Bruxelas, 18 de Julho de 2007
11976/07 (Presse 174)
P 58 (OR. en)

Declaração da Presidência, em nome da União Europeia, sobre o caso Litvinenko

A Presidência recorda a sua declaração de 1 de Junho sobre o assassinato de Alexander
Litvinenko, um crime grave e irresponsável. A UE manifesta a sua decepção ante a falta de cooperação construtiva da Rússia com as autoridades do Reino Unido. A UE salienta a importância e a urgência de uma cooperação construtiva por parte da Federação da Rússia nesta matéria. A UE espera uma solução satisfatória para este caso, que levanta importantes questões de interesse comum para os Estados-Membros'.

imagem: The Tank and the Waterfall , Last Riot2 [2oo6] AES+F, um colectivo de artistas russos que vi recentemente na Sotheby's, Londres. Precisamente...

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