Património
Durante a campanha eleitoral para a Câmara de Lisboa recordo-me de ter dito – meio a sério meio a brincar – que as ‘minhas’ duas grandes prioridades para Lisboa seriam o estacionamento e o património. Recordo-me, também, de ter escrito algo sobre golden shares e privatizações, em que comentava a erosão do Estado. O património é o que nos resta, ou, para alguns, é o último reduto da soberania.
Ao lado da filosofia política, e numa perspectiva mais pragmática, creio que é essencial uma política rigorosa e persistente na área do património. Quanto mais viajo mais admiro o património histórico que Portugal possui, e mais me entristece ver o seu estado de degradação progressiva.
O problema parece ser duplo: por um lado, uma falta de investimento financeiro; por outro lado, uma falta de vontade, de brio, de rigor, de eficácia (para não falar de eficiência).
São conhecidos os argumentos financeiros: a conjuntura, a dependência de economias externas, as fracas receitas fiscais, a privatização de várias empresas: parece que não há capital que possa ser alocado no que alguns chama de ‘cultura’. Porém, não compreendo que se faça obra nova sem manter a antiga: é inaceitável que o Estado – e também particulares – invistam em novas construções ser assegurar a manutenção do património imobiliário e histórico existente que o justifique. Haverá, naturalmente, excepções, como hospitais e outras infraestruturas básicas (regimes excepcionais que de resto não são utilizados...).
Porém, pela falta de vontade e rigor não há argumentos. Assume aqui especial relevância a gestão corrente das instituições do Estado e de supervisão, particularmente aquelas relacionadas com o ordenamento do território; com a preservação do património e, naturalmente, as administrações central (Governo) e local (autarquias). É impossível referir todas as situações a corrigir, pelo que recorro a exemplos soltos.
Só recentemente, por exemplo, se vem a verificar o recurso ao mecenato cultural. O Palácio de Versailles há mais de um século que recorre a estes expedientes (pelo menos duas famílias portuguesas participaram: a família Real – reinado de D. Carlos –e a família Espírito Santo). É incompreensível que só agora o mecenato surja em Portugal e ainda de forma tão restrita. A abertura ao Finibanco, ao BES, ao Finantia, etc. como mecenas do Palácio da Ajuda não é suficiente. É preciso fazer mais pelo património nacional (mesmo ao nível micro, na própria Ajuda, ainda há salas onde chove!). Não se compreende que se organizem grupos de voluntários (e.g. via escolas e outras associações) para reabilitar os degradados jardins de Queluz (aproveitem para encerar o óptimo mobiliário hoje decadente); é absurdo que não se construa uma cúpula de protecção nas Capelas Imperfeitas (Batalha), ainda que com recurso a financiadores externos; é inqualificável que jorre água da talha dourada (e voem pombos) na imponente catedral de Amarante; é algo ‘inadequado’ que não se dê uma pintura nos exteriores do Palácio de Belém...
Há vários campos de acção a nível político. Destaco dois: a geração de receitas próprias pelas ‘entidades culturais’; a formação técnica de gestores culturais e de funcionários. Mesmo que possa chocar alguns, é importante obter receitas mesmo que recorrendo a expedientes como o merchandising: utilizar os locais a preservar como leit motif de bens de consumo a adquirir por utilizadores desses locais, especialmente quando a realidade local portuguesa se caracteriza por uma evidente predominância de turistas não portugueses (e) com maior poder aquisitivo. Vídeos; fotografias; slides; roupas; acessórios; gravuras; livros; canetas; tudo é possível no merchandising, desde que se obtenha receita. A formação técnica (especialmente de gestores culturais) assume lugar especial, conjugando a vantagem das qualificações do gestor com o evitar da ‘empresarialização negativa’ do património nacional.
Introduzir certos princípios e métodos de gestão na cultura é essencial para corrigir falhas seculares e potenciar upgrades futuros nas instalações e restauro qualificado.
Não aceito que se atribua a estas medidas um carácter negativo de ‘comercialização’ da cultura. Pelo contrário: visam a manutenção da soberania do Estado sobre o património (senão teria de ser privatizado) bem como a sua existência (ou acabaria destruído...).
Ao pensar nestas questões recordo-me da discussão sobre a pena de morte. Isto ganha sentido pelo elemento que têm em comum e que nos leva a negá-las: são irreversíveis. O carácter de irreversibilidade deve fazer-nos defender, a todo o custo, o património natural, e /ou histórico, arquitectónico: é que tenha sido ou não feito por nós, uma vez destruído, não pode ser recriado. E no final da história (ou da destruição, ainda que por omissão) podemos sempre mudar de ideias...
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